quarta-feira, 21 de maio de 2014

Artigo * A vida livre, leve e solta


Ricardo Gondim

A luta pode ser inglória. Por vezes, cansa ter que remar. Descobrimo-nos estafados, obrigados a encarnar Sísifo – o condenado que rolou a mesma pedra, montanha acima, só para depois observá-la descer, montanha abaixo. Rotina e inferno se confundem. Nem sempre conseguimos romper com os padrões da monotonia.

Não há como suportar a constante ameaça de alguma guilhotina – as religiosas são as piores: lei, diabo, ira de Deus, o bumerangue dos erros. O domingo mal acaba e ficam os imperativos. Somam-se magistrados, todos ávidos pela cadeira de Moisés. O olhar sisudo dos competentes desce como juízo sobre o pescoço de quem já anda exausto. Os jugos pesam porque os ortodoxos contemplam pelo viés oblíquo da não-misericórdia.

Nesse vórtice, encaramos nossa ambiguidade. No paradoxo, nossa humanidade tanto se aproxima de abismos como se retrai. Somos como a vaga que se lança sobre a rocha. Construímos ninhos nas escarpas do penhasco. No precipício, somos transgressivos e por vezes, comedidos. Persiste uma insubordinação redentora. Ela nos empurra para além da linha traçada na calçada, que visava nos conter. Notamos, entretanto, que tudo possui mais de um lado. Humildade tanto pode nos deixar hesitantes como nos conduzir à gratidão. Moderação evita a arrogância e, ao mesmo tempo, nos rouba a iniciativa. Somos heróis nos espelhos pendurados nos salões que decoramos. Não passamos de bufões em camarins onde disfarçamos inadequação. Nossa virtude contém vícios. Nosso vício nos reconduz à virtude.

Efêmeros, temos vontade de ensurdecer aos ditames do sucesso. Permitimo-nos usar de licença poética, burlar a gramática e despejar a alma no mistério. Sem receio de nos ferir, cortar ou queimar, cedemos à saudade de andar com os pés descalços e de correr sem relógio.

Depois de tudo, resta resguardar a alma e evitar os que alinhavam argumentos implacáveis; se uma lógica parecer inumana, podemos nos trancar em armários e fugir do riso cínico, que deforma.
A vida, para vencer a brutalidade do cotidiano, carece de um chega. Mesmo que não saibamos explicar, um grito pode ajudar. E daí, seguir adiante com a alma livre, leve e solta.

Soli Deo Gloria

Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil

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