Ricardo Gondim
Os horrores de um campo de exilados das Nações
Unidas no Sudão passam desapercebidos porque parecem distantes. A sorte de
meninas vendidas ao tráfico internacional de prostituição soa como ficção. A
falta de perspectiva dos palestinos desempregados na faixa de Gaza não
sensibiliza cristãos. Por que se preocupar se a grande maioria é muçulmana?
Existem maneiras de se proteger da dor? Qual o
limite para o sofrimento? Há como comparar o lamento de uma mãe que perdeu a
filha com qualquer outro pranto? Para Simone Weil, o sofrimento que atinge
níveis próximos do desespero, chama-se infortúnio. Para a filósofa francesa, o
infortúnio acontece quando a dor chega, ao mesmo tempo, nas três dimensões
essenciais da vida: a física, a psicológica e a social.
A dor física, provocada por um dente infeccionado,
por exemplo, desaparece, instantaneamente, logo que o dente é extraído. Dores
isoladas não deixam vestígios.
A teóloga alemã, Dorothee Sölle, afirma que nem
mesmo a dor puramente psíquica alcança a dimensão do infortúnio. Para ela, o
espírito que por natureza foge do infortúnio com a mesma imediatidade e o mesmo
ímpeto irresistível com que um animal foge da morte, sempre dispõe de
suficientes meios de derivação. Isto é, sempre há como encontrar algum suspiro
para o sofrimento insuportável – até o suicídio.
Existem pessoas que sofrem o infortúnio porque são
atingidas, simultaneamente, no plano físico, mental e social; encontram-se
abatidas porque, junto com a dor corporal, esvai-se também a auto-estima e
junto com a baixa estima brotam sentimentos (reais ou imaginários, não importa)
de “descenso social”, que solapam a esperança.
O que os religiosos chamam de inferno é o mesmo que
a filosofia de Simone Weil trata como infortúnio: a soma do pavor de se sentir
proscrito da comunidade, mais o horror de ver-se como estrangeiro em sua
própria cidade, mais as sequelas da dor física, mais a culpa sem conserto, mais
a impotência diante dos processos da opressão.
A principal característica do infortúnio é a
escravidão, o desenraizamento da vida, algo que, numa forma mais ou menos
atenuada, equipara-se a uma morte. Esse algo presente na alma de forma
inelutável chega como agressão ou ameaça direta da dor corporal. Os torturados
entendem bem esse desenraizamento.
Uma mulher espancada pelo marido, e que convive em
ambiente religioso e social que não permite o divórcio, sofre para além da dor.
Essa mulher se vê escravizada a um “infortúnio” sem
fim. Ela vive um inferno. O mesmo inferno do índio tuberculoso quando tosse
sangue e é segregado do restante da tribo; ou do iraquiano que depois de
enterrar o filho, precisa voltar aos escombros de uma casa escura; ou do
camponês que trabalha na lavoura da cana até morrer.
Muito do que já se escreveu como teologia, não
passa do esforço de responder ou lidar com o infortúnio. Para Dorothee Sölle,
as várias tentativas de responder aos horrores do sofrimento acabaram
produzindo, simultaneamente, “masoquismo religioso” e “teologia sádica”.
“Masoquismo religioso” deve ser compreendido como o
esforço da teologia de oferecer argumentos que acalmem as pessoas em seus
infortúnios. E um desses argumentos vem como chamada para que se encare a dor
como pedagogia.
No masoquismo religioso as pessoas são ensinadas a
conviverem com um Deus que abate, traz sofrimento, permite agonias atrozes,
sempre para ensinar alguma coisa. Deus investe no crescimento dos seres humanos
e um de seus métodos é a dor.
Então, o objetivo de uma verdadeira espiritualidade,
nesse conceito masoquista, seria a aceitação ou resignação aos planos (nem
sempre explicitados) de Deus para a vida. Sölle menciona em seu livro,
“Sofrimento” (Editora Vozes), os argumentos de um pequeno dicionário teológico
sobre a responsabilidade do homem [e da mulher] diante do sofrimento:
Aceitar sem restrições a situação que se abate
sobre ele, acolhe-la e integrá-la criativamente e transforma-la (ativo enquanto
sofre e sofrendo ativamente) num momento de sua realização própria (o que ver a
ser o o posto de um passivo deixar-acontecer), de modo que nele se decida por
Deus… Nesse sentido o sofrimento se configura como ‘querido por Deus.
A frase de C. S. Lewis, repetida sem critérios por
muitos evangélicos, expressa bem a essência da espiritualidade masoquista: Deus
sussurra aos nossos ouvidos por meio de nosso prazer, fala-nos mediante nossa
consciência, mas clama em alta voz por intermédio de nossa dor. A dor é seu
megafone para despertar o homem surdo. Para Sölle, o masoquismo religioso ensina
que o sofrimento está aí para que seja quebrado o nosso orgulho, evidenciada a
nossa dependência. Assim entendido, o sofrimento teria como efeito
reconduzir-nos a um Deus cuja excelsitude se manifesta na medida de nossa
pequenez.
Infelizmente tal masoquismo prevalece na
cristandade ocidental.
Seu propósito aparentemente nobre é convencer as
pessoas de que os infortúnios incontornáveis da existência fazem parte de um
plano maior, são elos ou engrenagens de um sistema que visa nosso bem eterno.
Assim sendo todo sofrimento é considerado uma provação por Deus enviada, a que
devemos submeter-nos.
Quem aprender a se resignar diante das adversidades
mais implacáveis, consegue, dentro dessa maneira de pensar, maior consagração.
Como o sofrimento significa também punição, as tribulação devem ser
compreendidas como castigo divino, consequência de pecados antigos, inclusive,
do pecado original, cometido por Adão e Eva.
Tal masoquismo tenta, portanto, responder aos
infortúnios quando insiste que Deus faz adoecer porque ama. Se ele mata é
porque precisa cumprir algum propósito (sem precisar dar satisfações a
ninguém). Nesse pressuposto, afirmou-se que Deus chegou a criar homens [e
mulheres] maus para usá-los também em trabalhos sujos - calvinistas argumentam
com o endurecimento do coração de Faraó e a doutrina da dupla predestinação, em
que uns foram criados para o céu e outros para o inferno, para provar que Deus
usa a maldade para cumprir seu propósito.
Essa noção leva a outro extremo: o sadismo
teológico. Diante das ambiguidades humanas, diante do recrudescimento constante
do mal, não é difícil ensinar que todos devem se submeter a uma suposta
pedagogia divina. Ora, o mal não desaparece, não dá tréguas. O caminho
aparentemente mais fácil de lidar com as dores universais seria, então,
aprender a confiar que, de alguma maneira, o sofrimento sirva para algum
propósito – mesmo desconhecido e cruel.
Para substanciar esse aprendizado torna-se
necessário conceber um Deus como agente causal do sofrimento:
O Deus propiciador e agente causal do sofrimento
converte-se em tema transfigurado da teologia, a qual incapaz de um ardor
próprio, dirige o olhar para o Deus atormentador e exigente do impossível. Mal
se pode duvidar de que a Reforma tenha reforçado os acentos sádicos da
teologia. A experiência existencial assim como fora configurada na mística de
um Deus que se posiciona ao lado dos sofredores é substituída por uma
sistemática teologia relacionada com o juízo final.
Por isso, quando confrontado com situações
paradoxais como a prosperidade dos ímpios e os infortúnios dos fiéis, Calvino
ofereceu uma resposta no mínimo esquisita: O Senhor engorda os porcos para o
abate.A concepção calvinista do sofrimento tenta preservar a sagrada majestade
de Deus às custas da desvalorização da humanidade. Homens e mulheres são caídos
e tão monstruosos que a ira divina é justificada.
Para defender essa percepção, epidemias, guerras e
outras angústias são aceitas como castigos. O sofrimento vinga a glória divina,
pune os pecados e educa os salvos. O sofrimento seria, assim, um castigo de
Deus, mas para cumprir seu propósito. Calvino afirmou: Os povos que vens
castigar; os homens foram golpeados por tuas varas através da doença, da prisão
e da pobreza, devem ter pecado.
A teologia deve procurar esvaziar, precisamente,
tais concepções. Deus não justifica a miséria. Os profetas clamaram – e
sofreram – que a injustiça que condena bilhões à degradação sub-humana
não têm nada a ver com Deus. A truculência do imperialista e escravocrata nunca
fez parte do projeto criador de Deus. Deus não suja as mãos para que os dentes
das engrenagens escatológicas se encaixem. Existe uma incoerência interna no
argumento calvinista. Se Deus criou todas as coisas e as predestinou para que
fossem da maneira que são, ele não poderia se irar contra a perversidade já que
ela fez parte de seu planejamento eterno.
A dor humana é um acinte. Ele quer que todos tenham
vida com abundância. O abandono do pobre será sempre um horror que move Deus a
levantar profetas para mostrarem sua indignação. Chacinas e holocaustos são
excrescências provocadas pela perversidade humana; e Deus jamais planejou que
fossem assim. Há dores que ultrapassam infinitamente toda forma de culpa. É
demasia para todos – inclusive e principalmente para Deus.
É mister que se recupere o legado místico da
espiritualidade. Depois de tantos horrores, não é possível continuar com um
teísmo vingador. Não é possível aceitar o deus da pedagogia escondida – que
maltrata sem dizer o porquê. Nas tradições místicas, Deus não aceita, mas é
compassivo com o sofrimento e com as contingências perversas da história. O
clamor dos injustiçados, o sofrimento dos escravizados e as angústias dos
marginalizados sobem até os seus ouvidos e provocam sua indignação. O
sofrimento do mundo magoa o seu coração.
Mesmo na lógica sacrificial, se há alguma
necessidade de sacrifício para que a maldade não passe impune, Deus inflige a
si mesmo – o castigo que nos traz a paz estava sobre ele. Se o derramamento de
sangue é imprescindível para que se satisfaça a justiça, o Senhor, tal como uma
ovelha que segue para o matadouro, entrega-se pelo mundo.
Portanto, Deus não é sádico. Deus ama sem se
mostrar implacável. O conceito da graça acaba com toda a lógica sacrificial.
Ninguém precisa aprender a lidar com os infortúnios sentindo que foi
amaldiçoado. Cristianismo e masoquismo não combinam. A esperança de encarar a
história e de repensar a individualidade nascem da noção de que a divindade não
se tornou inimiga. Jesus fortaleceu a dignidade de homens e mulheres sem
distinguir maus e bons. Sem gerar soberba, ele reconhece a complexidade das
pessoas que guardam em si tanto bondade como maldade.
O sofrimento dos mais vulneráveis nunca, jamais, em
tempo algum, devem ser tratados como justiça. A lógica férrea da leia foi
esvaziada em Cristo. Deus é amigo do bem e está solidário com todos os que se
esforçam para reverter infortúnios.
Soli Deo Gloria
Ricardo
Gondim é escritor e teólogo, presidente da Convenção Betesda
Brasil.
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