Ricardo Gondim
A Bíblia hebraica, que os
cristãos chamam de Antigo Testamento, contém dois versículos com o mandamento
de amar o próximo e mais de trinta para amar o estrangeiro. Abraão albergou
peregrinos em sua tenda sem saber que eram anjos de Deus. O Testamento cristão,
chamado de Novo Testamento, contém inúmeras passagens sobre hospitalidade.
Paulo a incluiu como traço essencial no caráter do líder nas comunidades
primitivas. As primeiras ordens monásticas tinham como premissa básica receber
quem batesse na porta, sem indagar a condição que os levava a procurar abrigo.
Há dias venho matutando sobre
hospitalidade. Sem pensar religiosamente, considero hospitalidade uma das
virtudes mais belas de nossa frágil construção humana. Ela implica em renunciar
certos confortos para acolher quem se encontra desprotegido. Entendo que o
hospitaleiro se disciplina a abdicar o conforto do seu espaço para receber o
sem teto, o despatriado, o excluído social. Hospitalidade aceita a
inconveniência de conviver com quem não foi convidado para a festa. Onde apenas
os bem aceitos ou bem reconhecidos seriam bem-vindos, alguém com essa
disciplina faz o ambiente tornar-se inclusivo.
Ouso pensar em um tipo de
hospitalidade racional. Ela seria um traço das pessoas com coragem de criar
algum espaço em suas convicções mais caras em nome da coexistência. Pode ser
também hospitaleiro aquele, ou aquela, que permite abrir qualquer fresta em
suas certezas. Ele acomoda o outro e deixa que ele encontre a possibilidade de
colocar suas opiniões. Caso permita alguma rachadura na sala hermética de
minhas certezas, e ouço o diferente, principalmente se ele vem de uma opressão,
talvez, areje minha busca pela verdade. Aliás, compaixão (sofrer junto) tem muito
a ver com a disposição de arriscar o próprio inferno para oferecer coração e
braço a quem sofre.
O cristianismo começou como uma
espiritualidade lincada à hospitalidade. Jesus não se mostrou constrangido ao
fazer ajustes na cultura que herdou, na religião em que foi educado ou nas
pregações que proferira quando a situação do estrangeiro (a mulher
siro-fenícia), do excluído (a mulher apanhada em adultério) ou do discriminado
(leprosos) estava sob ameaça. Aliás, não há justiça sem a pratica da hospitalidade.
Antes de nascer o desejo de ver o direito do oprimido restabelecido, é
necessário que já preexista a vontade de abrir mão de qualquer conforto em nome
do injustiçado.
Tenho um exemplo melhor. No livro
de Tom Sawyer, As Aventuras de Huckleberry Finn, o personagem fica amigo
de um escravo chamado Jim. Ao ver o
amigo fugir, Huckleberry não saber ao certo como proceder. No culto, ouve um
sermão ainda hoje esquisito. O pastor avisa de púlpito que quem não denuncia escravos
fujões vai para o Inferno. Huckleberry, num rasgo de autêntica hospitalidade,
diz para si mesmo: Vou pro inferno, então.
Nessas divagações, pergunto:
quem, nos dias atuais, se voluntaria, não a mandar, mas a provar o inferno para
que palestinos, homossexuais, muçulmanos, refugiados, indígenas e tantos outros
marginalizados se sintam acolhidos?
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail: ricardogondin2@gmail.com
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