Ilustração da Web e arquivo |
Ricardo Gondim
A dias da eleição em primeiro
turno fui convidado, por via indireta, para um encontro de líderes evangélicos
com Marina. A reunião aconteceu em plena avenida Paulista. Sem saber quem
também compareceria, achei que deveria ir.
Estranhei, de princípio, os que
encontrei: pastores-presidentes de denominações e líderes neopentecostais,
alguns auto-proclamados apóstolos e apóstolas e vários bispos e bispas. A faixa
etária me chamou a atenção: a maioria era semi-idosa – iguais a mim. Faltavam
jovens. Observei que uma gerontocracia sacerdotal continua a dar as cartas
entre os crentes.
Depois, não podia deixar de notar
a baixa frequência. Os organizadores não conseguiram lotar as cerca de 500
cadeiras dispostas no clube Homs. Murmurei para mim mesmo em tom crítico: dá
para promover um evento gospel, mas é muito pouco para eleger um presidente –
no caso, presidenta – do Brasil.
Antes mesmo de cantarmos o hino
nacional, eu já conseguia suspeitar as percepções de mundo que inspiravam o
encontro. Vi expoentes de uma onda que se popularizou no final da década de
1980 pelo Brasil conhecida como teologia da guerra espiritual – que procura
combater demônios que se encastelam, desde os ares, em áreas geográficas
definidas. Com textos bem alegorizados da Bíblia hebraica – Antigo Testamento –
esse pessoal afirma que há príncipes diabólicos e potestades infernais
designadas pelo próprio Satanás para reger, aprisionar e destruir bairros,
cidades, estados e até o Brasil. A percepção fica entre o primitivo e o
medieval: uma batalha entre forças espirituais antagônicas – anjos versus
demônios – exige que os crentes se engajem através da oração. Sem a força das
preces, os demônios vencem, mas, quando a igreja ora, os anjos triunfam.
Identifiquei esses teólogos (grandes aspas aqui) nos corredores do encontro.
Constatei, inclusive, que alguns se dirigiram para a coxia do salão e não
voltaram mais. Minha intuição evangélica me avisa que foram interceder por
Marina.
A candidata evangélica estaria
vulnerável não ao constante bombardeio de marqueteiros de outros partidos,
sequer desgastada pelo assédio e intimidação de certos televangelistas, mas por
ataques satânicos. A vitória de Marina se daria, portanto, com jejum e oração;
jamais por sua capacidade de transmitir boas propostas políticas ao povo
brasileiro. Marina aconteceria no cenário político como encarnação de saias de
Dom Sebastião, vinda dos joelhos dobrados em oração para a salvação do Brasil.
Ela é guerreira do Senhor. Ela é ungida por Deus e capacitada pela intercessão
dos crentes para conquistar, nas esferas espirituais, os territórios, as
cidades e a própria nação do domínio que Satanás conseguiu exercer.
Marina entrou na reunião,
cumprimentou a todos e se sentou. Um apóstolo fez a prece da abertura. Antes de
orar, discursou por uns 10 minutos – que pareceram uma hora. Deixou claro: ele
empenhava os votos de sua comunidade com dois milhões de membros – exagero que,
sem juízo, pode ser creditado como mentira. Expressou outro ponto teológico que
explicava o primeiro e, talvez, mais importante porquê de os evangélicos
apoiarem Marina: uma reivindicação moralista.
Ficou nítida a força que animava
aquele auditório: eles queriam que Marina combatesse o avanço nas conquistas
civis dos homossexuais, impedisse o aborto e, num conceito mais difuso,
protegesse a família. Com a bancada evangélica, notoriamente, manchada por
enormes desvios éticos, o grupo sabe da conveniência de enxergar, nessas
causas, a ruína do Brasil. Algumas grandes igrejas nacionais – seus líderes
estavam no encontro – já foram investigadas até por assassinato. Se contar o
número de processos contra políticos evangélicos no STF, fica ridículo os
próprios evangélicos identificarem nos homossexuais, e na insistência da
comunidade LGBT de ter seus direitos civis reconhecidos, a desgraça do país.
Convidaram um pastor para
representar o presidente da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil
(ausente da reunião e que apoiou Aécio Neves). Lembro quase ipsis litteris de
suas palavras: - A candidatura de Marina Silva nasceu no coração de Deus. Deus
tem tudo, rigorosamente, sob seu controle. E ele levará sua serva à vitória. O
ambiente, que vinha morno, se acendeu. Aleluia, glória a Deus e amém se
repetiram entre mãos levantadas e salva de palmas. Minha reação imediata: E se
ela não for eleita?
Eu acabava de escutar a tolice
mais repetida em púlpitos, debates e nas frases de efeito que se espalham pelas
redes sociais. Ela soa interessante, mas não passa de um disparate. Se Deus tem
mesmo tudo sob seu mais absoluto e rigoroso controle e Marina perde, já no
primeiro turno, restam duas alternativas: o pastor falou asneira ou os dois
adversários que a suplantaram em votos – Dilma e Aécio – burlaram o
Todo-Poderoso; isto é, foram mais astutos. O pastor e aquele auditório, com
raríssimas exceções, não pensam nos desdobramentos de suas afirmações. A frase
não se sustenta. E essa piedade mostra o quanto o movimento evangélico nacional
prescinde de bom senso.
Além do mais, se Deus tem tudo
sob seu mais absoluto e rigoroso controle e a candidatura de Marina nasceu no
seu coração, aquela reunião devia ser uma celebração antecipada da posse. E
todo o esforço do comitê de campanha, todo o dinheiro gasto e toda rouquidão da
candidata não passavam de teatro, com o fim do espetáculo anteriormente definido.
Depois, o telão exibiu um pequeno
vídeo com Marina em comícios, com um trecho de seu testemunho de menina pobre,
sem comida em casa. A música da peça publicitária era, obviamente, gospel no
melhor estilo triunfalista. Não lembro a letra toda, mas o refrão repetia sem
parar a palavra vitória. Marina havia descido do palco para assistir ao vídeo
de frente. Uma das protagonistas do movimento "O Brasil é do Senhor Jesus.
Povo de Deus, declare isso" se pôs em pé, acenou com as mãos, pedindo palmas
efusivas.
Resumo minhas intuições, minhas
pistas, sobre o conteúdo que povoa o movimento evangélico e que esteve presente
no esforço de eleger Marina: 1) é paranoico e primitivo: transfere para o
sobrenatural e, portanto, para uma guerra insubstancial, os problemas humanos;
2) é megalomaníaco: o apóstolo conta vinte mil como se fossem dois milhões, o
bispo quer um templo mais faraônico do que o de Salomão, o televangelista voa
de helicóptero e todos ambicionam o máximo; 3) é moralista: o evangélico comum
se indigna motivado com o discurso de combate à corrupção, mas não move um
músculo compassivo contra racismo, homofobia, inclusão social de negros e de
índios ou por mais justiça na distribuição da renda; 4) é fatalista: o teólogo
evangélico jura que Deus tem tudo sob seu controle, mas não consegue detectar
incoerência na frase ao se deparar com o rio imundo, com o estupro da
adolescente ou com a aleatoriedade da bala perdida que deixou o menino
tetraplégico.
Saí da reunião triste. Eu tinha
dois motivos: Marina não ganharia a eleição – embora o pastor tivesse jurado
que ela vinha do coração de Deus. E se minha amiga acreana ganhasse, sua vida
seria um inferno; os apoiadores crentes seriam piores do que os inimigos ateus.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail:
ricardogondin2@gmail.com
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