Ricardo Gondim
No abraço senti seu corpo magro.
Notei seus olhos baços. Eles me contemplavam sem entusiasmo. Logo na primeira
palavra, percebi na voz quebrada, ela era uma mulher sofrida. Eu imaginava,
sem alcançar, a angústia que minha amiga
atravessava. Ela experimentava a hora mais dolorida. Seu momento era o mais
terrível da existência: o luto.
A morte é sorrateira, insidiosa e
traiçoeira. Os desenganados recebem o bilhete fatal com algum tempo para
arrumar a casa. Para minha amiga a guilhotina desceu sem aviso. A morte não
respeitou sequer possíveis imaturidades. A morte serpenteou, deu o bote, feriu
e ceifou a seu bel prazer. O que dizer, diante de uma mãe que chora, de uma
esposa que perde o chão e que não sabe se terá forças para achar o norte?
As respostas aparentemente
confortadoras se esvaziam. Deus tem um plano.
Ele leva para si os bons. Chegou a hora.
Frases bobas. Elas funcionam como aspirina, aliviam sem curar. Em um
esforço medonho de não parecer professoral, procurei oferecer outro modelo de
como perceber os mistérios da vida. Logo notei meu esforço inútil. Minha amiga
esperneava dentro da cerca teológica que fora educada. Deus governa e como um
dramaturgo celestial, conduz o desenrolar de nossas vidas. Deus não permite que
nada aconteça sem que esteja previsto em seu roteiro.
Silenciei, abraçado. Voltei ao
hotel. Chorei. Por horas não consegui
apagar o sofrimento daquela mãe. Além de ter que aprender a repetir a litania
fúnebre do nunca mais, ela terá de brigar com a sua ideia de Deus. Que
tristeza. Deitado, insone, escutei sua indignação lacerante: Por que Deus se
mantém obscuro em seus planos? Por que, tão indiferente? Vou esperar quanto
tempo até entender seus motivos para levar (levar não passa de eufemismo para
“matar”) um pai precioso, um amigo querido, um filho especial?”.
Debulhei-me em lágrimas.
A morte baterá em outras portas.
A ceifa da morte não cessa. Nunca distingue justos de injustos. Traficantes
vivem mais do que mulheres bondosas. Pais enterram os filhos – o certo deveria
ser o contrário. Acidentes eliminam em uma só tacada, jovens e idosos. Os
amigos de Jó erram nas conjecturas sobre o sofrimento universal. O justo Jó é
arrasado por todo tipo de infortúnio, sem que se conheçam os porquês de sua
aflição.
Prefiro a insinuação bíblica de
que Deus que não age como títere, a puxar os cordões das marionetes.
Considero-o Emanuel: O Deus presente. Jesus encarnou e viveu a sua humanidade
até as últimas consequências. Semelhantes a ele, no espaço da liberdade, também
estamos cercados de perigos, e sempre à beira do derradeiro suspiro.
Deus não arbitra quem morre. Ele
não rege a história segundo critérios inacessíveis. Deus se compromete a
revelar seu amor no soluço da perda. Deus se revela em cada abraço, em cada
palavra de solidariedade e em cada gesto de lealdade. A nossa dor dói em Deus,
afirmou o profeta Isaías. Deus fonte de compaixão – nas duas raízes para
“com-paixão”: Deus sofre junto.
Nada posso especular sobre a
morte, mas minha intuição avisa: reconhecer a companhia fiel de Deus traz mais
conforto do que questionar os porquês do que nos é inacessível.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil
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