Ricardo Gondim
Os vivos albergam três inimigos
que podem surpreender nas madrugadas insones: fracasso, impotência e culpa.
Quem lida mal com as próprias inadequações sofre horrores. A percepção da
fraqueza existencial, faca de dois gumes, tanto ajuda como destrói. Quem reluta
contra sua condição frágil arquejará, invariavelmente, sob o peso de seus
erros.
Exigências sociais também podem
deixar qualquer um como peixe fora d'água, arfando. Não há fatiga mais
debilitante do que a inaptidão. Vez por outra, nos consideramos calouros
desafinados em show de talento. A iminência do gongo nos aterroriza. A mente
recria os momentos em que fracassamos. Paralisamos, iguais ao jogador que pisou
na bola na pequena área e não consegue mais voltar a fazer gol.
Não poucas vezes retrocedemos,
intimidados. Depois de algumas descomposturas, perdemos a ousadia de tentar
novos caminhos. Quando falamos, gaguejamos. Não faltam pessoas que nos lembrem
nossos tropeços. Depois que nos esmeramos tanto, fica um gosto amargo: estamos
em falta com a divindade.
Religioso nunca se desvencilha de
culpa. Na lógica da religião, mesmo depois de décadas, continua a sensação de
que somos os principais pecadores. A mente martela: você frustrou os anseios de
seu pai, constrangeu sua mãe e decepcionou Deus. Queremos rasgar a máscara, mas
ela parece pregada na cara. Não sabemos quem é mais verdadeiro, o simulacro
imposto pela igreja ou a pessoa que conversa conosco de dentro do espelho.
Deixamos de ser a personagem que se exibia sob as luzes da ribalta, todavia,
não achamos nosso verdadeiro eu.
Dura tarefa admitir a própria
impotência. Entre heróis, precisamos ir no caminho inverso. Sem a capa dos
ungidos, abrir mão da capacidade de decretar milagre, não ter por usurpação ser
igual a Deus e não buscar encabrestar as pessoas ao nosso redor. Quem trilha a
estrada do esvaziamento deve saber: seus argumentos não passarão de
arrazoamentos; é impossível controlará o porvir; jamais alguém conhecerá as
rotas de fuga do labirinto chamado vida; não há como antecipar os incidentes –
ou acidentes – existenciais.
O passado se projeta como sombra
e pode nos aterrorizar. Melancolia não passa de remorso não curado. Cientes das
escolhas equivocadas, todos convivemos com a tortura de sentir que
transgredimos alguma lei, maculamos o universo ou constrangemos expectativas
divinas. Para nos livrar da angústia de nos perceber inadequados, agudizamos as
faltas. Fazemo-nos os piores do que somos e, cabisbaixos, procuramos nos purgar
por meio de uma penitência redentora, final e definitiva. Transformamo-nos em
algozes. Implacáveis com nossas sombras, projetamos nos outros as maldades que
nos atormentam.
Só depois que notamos a
inutilidade dos castigos é que temos condição de fazer as pazes com a alma.
(Quem estabeleceu a régua implacável que me condenou? Quem exige que eu controle
as variáveis insubordináveis do universo? Qual o ganho se culpa me atolar em
autocomiseração?)
Não precisamos desempenhar. Não
somos demiurgos em algum palco cósmico. Felicidade não consiste em impor a
vontade sobre as demais pessoas. Ninguém despista a angústia – ela é condição
humana.
Resta-nos levantar a cabeça.
Nosso valor não depende de alcançar os atributos omni dos deuses. Rechacemos as
vozes que lembram o nosso fracasso. Procuremos desdenhar da tentação de
afirmar: Tudo posso. Transformemos culpa em aliada. Não nos vejamos decadentes,
caídos. Somos Fênix, destinados a renascer.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil.
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