Ricardo Gondim
No espelho, olhos nos olhos, reconheço três inimigos
em minha alma. Eu os encaro e procuro desafiá-los. Sei, porém, que há tempo os
três me espreitam. São adversários sorrateiros. Eles gostam de me assombrar nas
esquinas onde aguardo o fim da madrugada insone. Crio coragem para chamá-los
por seus nomes: fracasso, impotência e culpa.
Fracasso é sentimento, nunca constatação. Não é
necessária uma derrota para alguém se sentir fracassado. O sentimento de
fracasso vem do destreino de lidar com inadequações. Depois de décadas
absorvendo o discurso de perfeição, confesso acometido, vez ou outra, pela sensação de derrota. Nesses episódios,
minha fraqueza parece maior do que realmente é. Sem conseguir flechar alvos na
mosca, me sinto fustigado por cobranças imateriais e o peso dos erros pesa como
um fiasco monumental. Somem-se ainda as demandas religiosas, as pressões
culturais e eu, como qualquer outro, me flagro arfando por compreensão. Me
fadigo só de pensar que devo dissimular as minhas inaptidões. O sujeito que me
encara de dentro do espelho tem rugas profundas – e eu sei o porquê.
Me confesso calouro. Desafino a melodia da vida. Não
consigo sair das divisões de base para ser escalado no time profissional. Piso
na bola. Perco gols embaixo da trave. Muitas vezes me enrosquei em pecadilhos
bobos por superestimar a minha capacidade de sair de enroscos. Me ensinaram que
os erros passados tendem a retornar como um bumerangue. Agora sei que essas
ameaças objetivam manter as pessoas bem comportadas. Digo ao homem que me espia
de dentro do espelho que se transgredi alguma lei eterna, e se ofendi a
divindade, espero mais por uma misericórdia infinita do que por uma justiça
pontual.
Se me entrevistam sobre convicções, gaguejo. Busco
fazer um caminho próprio, mas tropeço em meus cadarços frouxos. Obrigado a ouvir
quase diariamente discursos doutrinariamente corretos, sinto não caber na roda
onde sentam os mestres da ortodoxia. Não quero ser apologético. Como não
alcancei galgar os degraus mais altos da piedade, também não almejo a cátedra
de Moisés.
Ouço pregadores da culpa, especialistas em
conscientizar os outros sobre as exigências divinas, e só tenho desdém. Quanto
mais esbravejam menos consigo entender os motivos que levam as pessoas a
frequentar uma religião que os constrange e os massacra.
Em minha exaustão, diante do espelho, despedaço o
ícone que tentaram forjar em mim. Não alimento mitos ilusórios. Aconselho a
minha alma a permanecer comum. Lembro a mim mesmo que máscaras podem grudar na
cara da gente; e mesmo sozinho, eu não conseguiria me desvencilhar delas.
Os anos correm velozes. Agora, mais do que nunca, me
vejo obrigado a admitir: não sou onipotente. Devo me despir da obrigatoriedade
de desempenhar como os messias – ainda não aprendi a decretar milagre com a
eficiência dos sacerdotes mais ungidos.
A propaganda sobre poder espiritual não me fascina. Na
verdade, quero fugir da tentação de encabrestar a vida. Argumentei, preguei e
ensinei em auditórios grandes, pequenos, ricos, pobres, eruditos e simples.
Depois de tudo, tenho que admitir: muito dos meus argumentos jazem no
esquecimento das pessoas. Meus ouvintes guardaram apenas o que lhes convinha.
Para muitos, falhei em comunicar o que eu valorizei tanto.
Nunca me imaginei genial. Nenhum conhecimento me
chegou fácil. Aprendi devagar. Fui obrigado a ler o dobro para aprender um
mínimo. Não decoro. Esqueço rápido o que acabei de estudar. Os inúmero volumes
que devorei não ajudaram a me tornar perspicaz. Agora me aproximo do fim. Minha
capacidade de atinar para além das fronteiras do pensamento chega,
perigosamente, perto do limite.
Sofri porque fui bronco, um teimoso quando devia
antecipar incidentes. Houve ocasião em que fui ingênuo. Eu não soube proteger
as costas de conspirações insidiosas. Quase adoeci quando invejosos tentaram me
destruir. Não intui, e fatos cruéis me assustaram.
Depois que enfrento os meus três grandes inimigos –
fracasso, impotência e culpa – , faço as pazes comigo mesmo. Questiono quem
subiu o sarrafo existencial tão alto e digo que é falsa a ideia de que podemos
controlar todas as variáveis da existência. Repito: se culpa tem algum efeito
terapêutico, ela deve ser passageira; caso permita que ela se enraíze em mim,
me arraso em autocomiseração.
Não preciso ser campeão em nada. Celebro a minha
identidade sem precisar me explicar e o meu dia sem atender ao imperativo de
quem me quer perfeito. Ergo a cabeça. O meu valor não depende de cumprir
roteiro que outros rabiscam em meu nome. Pisoteio, assim, o fantasma do
fracasso. Todavia, não esqueço: o demônio da vaidade me acena em cada fôlego.
Preciso saber lidar com ele. Neste diálogo tenso comigo mesmo, sigo adiante sem
esquecer de elogiar essa esquisitice chamada vida.
Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente da
Convenção Betesda Brasil. E-mail:
ricardogondin2@gmail.com
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