Ricardo Gondim
Já tive pesadelo e sonho de todo
tipo: espiritual, erótico, bobo, doido, megalomaníaco, zen budista, feliz e
angustiado. Basta pregar os olhos e logo a mente monta palco, produz
ópera-bufa, escreve drama, faz comédia. Me visto de palhaço, guerreiro,
artista, santo e, pasme, até de jogador de futebol. No sono profundo, a cortina
do teatro sobe e entram em cena os muitos Ricardos que se escondem no
inconsciente.
Noite passada, sonhei numa
tertúlia ao lado Chico Buarque de Holanda. Estávamos em um barzinho. Ele me
convidava para compor uma música em parceria. Acordei doido para lembrar os
versos. Não consegui – se lembrasse, certamente, seria um sucesso mundial.
Por causa desses sonhos malucos,
acabo me achando amigo de gente que admiro. Eles parecem familiares. Me vejo em
saraus literários, lendo e ouvindo poesia perto de gente que já morreu –
Vinicius de Moraes, por exemplo. Já me senti colega do Nelson Mandela. Tem dias
que acordo com a sensação de que acabei de conversar com Mia Couto.
Sonhos narcisistas, admito. Todos
nos sentimos talento perdido ou joia de rara beleza no fundo da gaveta.
Inconscientemente, guardamos a saudade de um tempo em que fomos o centro do
universo. Só quando sonhamos nos vingamos da injustiça do mundo não nos
reconhecer. Talvez na vida intra-uterina, naquele mundo líquido, fomos o foco
da atenção física, psíquica e – com algumas exceções – emocional de quem nos
gerava. Depois do parto, nos primeiros dias de vida, precisamos de um cuidado
especial para sobreviver. Só depois, com o passar do tempo, nos autonomizamos
com a descoberta de que o umbigo da gente não é o centro do universo. Com a
maturidade, aprendemos: existem muitas outras pessoas com mais talento, mais
riqueza e mais beleza física do que nós.
Angústia e inveja se originam da
incapacidade de lidar com uma realidade crua: o mundo não gravita em torno dos
nossos interesses. Apesar de únicos, ninguém é especial. Talento e
potencialidade não garantem privilégios que todos os outros também não mereçam.
Entre homens e mulheres não existem titãs, anjos, deuses, super-homens, ídolos,
messias ou predestinados.
O neurótico não aceita essa
realidade. Mais tentador se transferir para o mundo dos sonhos, das
idealizações e das onipotências. Na recusa de enfrentar o dia-a-dia, alguns se
valem da religião, outros se entregam ao ativismo profissional e muitos se
atolam no consumismo – e todos adoecem.
Aprendo a rir dos meus sonhos.
Pouco a pouco, consigo me divertir nos devaneios narcisistas. Sei que as
viagens malucas do inconsciente não podem me enganar: moro numa cidade
violenta, de trânsito caótico e lotada de pessoas tão complicadas quanto eu.
Também sei que o Chico jamais se interessaria em musicar um poema meu.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil
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