Ricardo Gondim
Algumas vezes procurei me
isolar para meditar em lugares pouco convencionais. Esquisitos. Caminhei em
alamedas de cemitérios antigos. Reconheço a excentricidade. Não me vejo
mórbido. É que a morte é uma realidade crua. Entre tumbas, por incrível que
pareça, me coloco cara a cara com a vida. Cemitério é bom lugar para repensar
prioridades.
Nessas meditações, paro
diante de sepulcros semidestruídos. Indago: o que aconteceu com a família? Por
que o mato toma conta? Outrora alguém chorou aqui; não sobrou um parente? Noto
as placas gravadas em granito se esfarelando. Divago sobre o nomes. Quem foram?
Nos epitáfios, raro ter alguma referência sobre o que viveram ou sofreram.
Consta apenas a conjunção de apelidos que, um dia, garantiu a identidade de
alguém – mas, hoje, desaparece entre escombros.
Nessas divagações, acordo
para o desejo humano de não ser esquecido. Todos nos angustiamos com a ideia de
ser gotas no oceano da história. Choramos quando a luz nos encandeou pela
primeira vez. Gritamos na sala de parto e ganhamos a atenção de quem nos ajudou
a vir ao mundo. Naquele instante, começamos a imaginar que o centro do universo
estava perto da gente. A praça central da galáxia podia muito bem ser o lugar
onde estivéssemos. O peito que nos alimentou, também nos nutriu de auto-estima.
Crescemos com a convicção – nem sempre confessada – de que o mundo existe por
nossa causa.
Gastamos parte da nossa
existência a ambicionar algum tipo de eleição. Quando a vida se impõe com
acidentes e percalços buscamos manter a certeza de que algo – ou alguém – nos
distingue dos demais. Fantasiamos existir uma lista de gente especial – com o
nosso nome no topo da lista. Iludidos, sonhamos com a possibilidade de contar
com a confluência dos astros, com as rodas do destino ou com os olhos de Deus.
Precisamos tornar a nossa própria história o eixo do mundo. Sempre que algum
evento confirma nossa singularidade ficamos alegres e sempre que somos
frustrados, esperneamos. Lutamos para que os vetores estrelares se encaixem, a
vontade de Deus se cumpra e o karma nos presenteie.
O conceito de eleição está
presente nas mitologias, nas narrativas bíblicas e na meritocracia neoliberal
do mercado. Narciso foi galardoado com beleza. O sacrifício de Abel foi aceito
por Deus e o de Caim, rejeitado. Jacó, a despeito dos seus trambiques, manteve
sua primogenitura enquanto Esaú foi descartado. Samuel marcou um "x"
nas costas de Davi – ele era o estimado de Javé para ser rei em Israel.
A história secular também
teve poetas, literatos, cientistas e políticos que se acreditaram eleitos.
Deus, vida, destino ou quaisquer outras forças os separavam dos banais. Esses
ditaram aos outros mortais os códigos, as guerras e os valores que criaram.
Em "Crime e
castigo", Dostoievski separou a humanidade em "ordinários" e
"extraordinários". Os "extraordinários" seriam homens e
mulheres que têm o direito de fazer e acontecer na história. Eles não sofrem as
penas que os demais estão sujeitos. Só as pessoas comuns são obrigadas a agir
dentro do rigor da lei. As pessoas comuns, quando transgridem, sofrem não só o
peso do tribunal, elas são, igualmente, devastadas pela culpa. As pessoas
"ordinárias" não têm o direito de questionar as exigências morais que
os "extraordinários" escrevem e impõem, pois eles são os eleitos –
predestinados, escolhidos, ungidos..
Muito do esforço humano
consiste em não desaparecer. As placas dos cemitérios não deixam esquecer:
Vaidade de vaidade, tudo acaba em nada. Religiosos sistematizam teologia para
ensinar que mesmo na hostilidade da vida, Deus escolhe sua casta especial, e
ela vai desfrutar as delícias do paraíso. A indústria do entretenimento também
elege reis e rainhas. Os ídolos da música, do futebol e do cinema não vivem com
as mesmas regras que os fãs. Políticos religiosos se sentem triplamente eleitos:
o eterno os guinda à posição de mando, o povo homologa a providência divina e a
fortuna os brinda com as benesses do poder.
Acreditar-se eleito é
maldição antes de ser bênção. Alguém se sentir escolhido implica na necessidade
de lidar com a soberba – que antecipa a queda.
Quem se acha escolhido, por ser rico, precisa superar uma piedade
paternal, que enxerga o excluído de cima para baixo. O herdeiro de fortunas
corre o risco de perder os espaços simples, onde a vida realmente acontece.
Os maiores carniceiros da
história se viram eleitos. Hitler, Patton, Pinochet, Bush, acreditaram de
verdade que alguma força – ou pessoa –
os privilegiou para mudar a história. (Interessante observar: o Novo Testamento
diz que o Messias – o ungido de Deus – abriu mão das prerrogativas, dos
privilégios divinos, para se irmanar a escravos e pobres).
Todo e qualquer sistema que
rodopia no conceito de "raça eleita", "povo especial" ou
"cultura sagrada" tende a se tornar opressor. Toda a barreira que
separa homem de mulher, senhor de escravo e pobre de rico, merece ser
implodida.
O universo não se expande
selecionando os que serão mais ou menos premiados. O tempo e o acaso alcançam a
todos. O imprevisível, resultado da aleatoriedade, esvazia a noção de que os
incidentes cumprem algum imperativo do karma. Nas palavras de Jesus, sol e
chuva veem sobre todas as pessoas sem distinção. A graça divina não privilegia
um punhado, relegando multidões à miséria.
Amor não particulariza.
Misericórdia, para ser misericórdia, despreza a causa e o efeito da lei. O
destino é cego e, portanto, incapaz de nomear favoritos. A confluência astral
não distingue quem é quem entre os milhares que chegam ao mundo naquele exato
instante.
Quem deseja se tornar
predileto se apequena. Quem ambiciona ascender, cai. Quem cobiça um patamar
acima do restante da humanidade, mingua. Os ufanistas são pobres. A filosofia
deve ensinar a irmandade das nações. Na política, vale insistir, não existe
ética mais nobre que diminuir a brecha entre apaniguados e marginalizados. A
verdadeira espiritualidade é inclusiva. Chega de individualismo. Basta de
egocentrismo e personalismo em nome do divino.
Em futuro não muito
distante, algum caminhante vai parar diante de uma cova e não saberá se ali jaz
um predestinado – que pensava ter o rei na barriga – ou uma pessoa qualquer.
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail: E-mail: ricardogondin2@gmail.com
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