Ricardo Gondim
Como sei o que sei? Nesta
pergunta básica reside todo o problema da epistemologia. Um nó apertado. Não
pretendo, aqui, lidar com os fundamentos filosóficos do conhecimento, mas com a
crise que o protestante brasileiro, e particularmente com a crise do
evangélico, que esperneia quando se defronta com a dúvida.
Sinto-me desafiado a aliviar
este nó epistemológico, porque o assunto me toca de perto. Como pastor
evangélico, como pesquisador das Ciências da Religião e como cristão, preciso
entender o porquê do receio diante da possibilidade da dúvida.
É próprio do sujeito
religioso assegurar a sua convicção inabalável, a sua certeza absoluta e o seu
acesso perfeito à verdade divina. Ele se considera tão convicto de que atingiu
a realidade única, objetiva, real e concreta, que sai para fazer prosélitos.
Admitir a remota possibilidade de não estar alinhado à verdade absoluta,
constitui-se em fraqueza inadmissível para o praticante de uma tradição
religiosa que se pretende herdeira legítima dos segredos divinos.
O problema se torna agudo
entre os evangélicos e protestantes que optaram pelo que Rubem Alves denominou
de "Protestantismo da Reta Doutrina". Precisamente eles, os da reta
doutrina, levedam a precária produção literária e teológica dos evangélicos
nacionais. Segundo Rubem Alves, os "Protestantes da Reta Doutrina
privilegiam a concordância com uma série de formulações doutrinárias, tidas
como expressões da verdade, e que devem ser afirmadas sem nenhuma sombra de
dúvida, como condição para participação na comunidade eclesial"[1].
Esse grupo se firmou nos
Estados Unidos no apogeu da modernidade, quando se questionava a legitimidade
"científica" dos relatos bíblicos. Alguns teólogos calvinistas se
apressaram em demonstrar que o cristianismo não era apenas racional, mas a
única revelação de Deus aos homens. O teólogo Charles Hodge catalogou cinco
fundamentos da fé cristã, para ele inegociáveis. E de seus primeiros tratados,
nasceu um movimento que passou a ser conhecido como
"fundamentalismo".
Hodge afirmou: que "a
tarefa do teólogo consiste não em buscar significado além das palavras, mas em
organizar os claros ensinamentos das Escrituras num sistema de verdades
gerais"[2]. Ele chegou a dizer que "Deus inspirou cada uma das
palavras da Bíblia; portanto, é preciso levá-las a sério e não distorcê-las com
exegeses alegóricas ou simbólicas"[3].
Portanto, o termo
fundamentalismo, hoje carregado de significados negativos, a princípio não
passava de um esforço sincero de tornar os textos sagrados em "verdades
factuais". Os teólogos fundamentalistas cometiam, entretanto, o mesmo erro
dos cientistas da natureza, os racionalistas que se ocupavam com a razão – com
análise de dados, com fatos, fenômenos, operações, processos, energias,
estruturas, evoluções[4].
Hans Küng afirmou que, caso
os teólogos e filósofos queiram dialogar com a ciência natural, será necessário
modéstia e autocrítica. Pois "muitos cientistas já chegaram a reconhecer
que não podem oferecer verdades definitivas"[5]. Nem mesmo a ciência,
através do método empírico, ousa deter verdades absolutas.
Küng não mede palavras
quando aborda a atitude do teólogo quanto à verdade: "Pois também eles,
que profissionalmente estão empenhados na verdade da fé, não possuem de antemão
esta verdade, nem dela dispõem de forma definitiva"[6].
O movimento evangélico
nacional esperneia por saber que a lógica fundamentalista, de possuir a verdade
final, . Segundo Prócoro Velasques Filho, em Introdução ao Protestantismo no
Brasil (Edições Loyola, p. 126) o corte do protestantismo, os evangélicos
brasileiros têm raízes no fundamentalismo norte americano, que se caracterizou
precisamente por dois eixos principais: omilenarismo e a teologia da inerrância
ou inspiração plenária da Bíblia. Para os teólogos originais do
fundamentalismo, a "revelação de Deus só seria perfeita se fosse 'isenta
de erros, contradições, paradoxos e inconsistências'".
Com esta característica de
privilegiar a adesão dogmática à uma "verdade absoluta", antecipo dois
caminhos para os "Protestantes da Reta Doutrina":
a) Acomodam-se
em repetir os antigos dogmas, sem coragem para se repensarem, sem ousadia para
fazer perguntas que os deixarão sem respostas, sem determinação de levar às
últimas conseqüências suas deduções.
b) A
repetição produz conforto. Os crentes estão sempre em busca de conforto quando
vão às igrejas aos domingos. A repetição conforta porque ela confirma a
imutabilidade da verdade. E na medida em que a verdade afirmada no momento é a
verdade que alguém já está acostumado a ouvir, cria-se a certeza de ser-se
senhor da verdade[7].
Acontece que a repetição
também conduz ao enfado. A optar pela repetição de verdades bem assentadas e
previamente cridas, o evangélico cria um ambiente de mesmice. E para sair da mesmice,
precisa inventar ambientes emocionalmente carregados, para isso apela para os
cânticos que eletrizem em nome de louvores, as emoções que o discurso não gera.
Antônio Gouvêa Mendonça,
pesquisou os primórdios da evangelização brasileira e concluiu:
"Sabemos que os sermões
eram conservacionistas e polêmicos; o pregador procurava apelar para a
distinção entre a "verdade" e o "erro", entre a nova
mensagem e a religião dominante. O tom do sermão era dogmático e racionalista
ao mesmo tempo; dogmático ao fundamentar-se nos dogmas comuns do cristianismo
que deviam ser recuperados diante de uma melhor e mais verdadeira fundamentação
escriturística, e racionalista ao procurar tecer o sermão numa lógica
irrecusável. O objetivo era convencer o ouvinte e uma verdade contra outra. Mas
o dogmatismo-epistemológico-polêmico nem sempre era suficiente para mover o
ouvinte a uma mudança de atitudes; daí a necessidade de aliar ao sermão, já na
maior parte das vezes dramático, cânticos apropriados para auxiliar a elevação
do "tônus" emocional da reunião, formando ambiente favorável às
decisões individuais (conversões)"[8].
c) Recrudescem
na intolerância, fecham-se em guetos, endurecem o controle criam
"historiadores oficiais", "teólogos chancelados",
"voltam os tribunais inquisitoriais" para caçar os que se atrevem
caminhar até as fronteiras (Boaventura), os que saem dos paradigmas (Kuhn), os
que desafiam os marcos categoriais (Juan Luis Segundo).
d) Atrevo-me
a sugerir que o movimento evangélico brasileiro reconheça sua incapacidade de
abarcar "a verdade", que abandone o pressuposto de que vai codificar
a correta doutrina de Deus, admita que o conhecimento absoluto de Deus está
para além da capacidade humana. Na verdade, ninguém tem o acurado conhecimento
de Deus; caso fosse possível, como alguém já afirmou, "eu seria ele".
O teólogo espanhol, Andrés
Torres Queiruga propõe que a teologia abra um diálogo até com os ateus:
"O ateísmo, em sua
própria negatividade, pode ser uma grande oportunidade para a fé; pode até ser
uma medida da Providência para que os cristãos, assumindo a crítica ateia,
compreendam que Deus é sempre muito maior. – "Deus sempre maior" – do
que as idéias que nós fazemos dele. A crítica dos ateus pode ajudar-nos a
romper os esquemas em que tantas vezes encadeamos e deformamos a ideia de
Deus[9].
Para sair do impasse de que
a fé precisa de verdades absolutas e a possibilidade de dúvida. Proponho que a
cosmovisão protestante evangélica re-signifique a fé. Sugiro, portanto que:
A verdade seja tratada como
"boa-fé".
No excelente "Pequeno
Tratado das Grandes Virtudes", André Comte-Sponville coloca a
"boa-fé" como um dos grandes valores da humanidade. O filósofo
francês, depois de lutar entre os termosveracidade, veridicidade e
autenticidade, optou finalmente por "boa-fé". Para ele, boa-fé é um
fato, portanto, aomesmo tempo uma realidade psicológica e uma virtude, ou um
traço moral. Como fato, boa-fé, é "a conformidade dos atos e das palavras
com a vida interior, ou desta, consigo mesma". Como virtude, é o amor ou
respeito à verdade. Ter boa-fé é dizer o que acredita, mesmo que esteja
enganado, como acreditar no que diz. É crença fiel, e fidelidade no que se crê.
A verdade deixaria, então de
ser a concordância a um postulado ou a uma asseveração previamente estudada e concordada,
para ser uma integridade. A boa-fé se opõe, portanto, ao dogmatismo. E quem
opta pela verdade em nome do dogmatismo e não como uma "boa-fé", vira
intolerante.
"Tomam sua fé por um
saber. Por ela, estão dispostos a morrer e a matar. Eles não duvidam. Eles não
hesitam. Eles conhecem a Verdade e o Bem. Para que necessitam de ciências? Para
que necessitam de democracia? Tudo está escrito no Livro. Basta crer e
obedecer. Entre Darwin e o Gênesis, entre os direitos do homem e a Sharia,
entre os direitos dos povos e a Tora, eles escolheram de que lado estão, de uma
por todas. Eles estão do lado de Deus.. Como poderiam estar errados? Por que
deveriam crer em outra coisa? Fundamentalismo. Obscurantismo. Terrorismo. Eles
querem fazer-se anjos; fazem-se de bestas ou de tiranos. Tomam-se por
Cavaleiros do Apocalipse. São os janízaros do absoluto, que eles pretendem
possuir com exclusividade e que reduzem à dimensão, singularmente estreita, de
sua boa consciência. São prisioneiros da sua própria fé, escravos de Deus ou do
que consideram ser – sem provas – sua Palavra ou sua Lei"[10].
A verdade como história,
como narrativa, como metáfora.
Jonathan Sacks diz que o
judaísmo é repleto de histórias, segundo o dito judaico, "Deus criou o
homem porque gosta de histórias". A própria Bíblia é um dos exemplos
fundamentais da verdade como história, ao contrário do modelo ocidental
conhecido – a história como sistema[11]. O saber conceitual não é o mesmo do
saber proverbial. O conhecimento absoluto não está na mesma categoria do
conhecimento intuitivo. A percepção das entranhas não é a mesma da razão. Em
outras palavras: pensar com as vísceras e com o coração pode ser mais
significativo do que capitular ao racionalismo.
A verdade como compromisso
com a vida.
De acordo com Michel de
Foucault a "verdade" como conceito absoluto precisa do anteparo do
poder. A verdade que prevalece não é necessariamente "a" verdade, mas
aquela que as instituições dominantes impõem:
... a verdade não existe
fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria
necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos
livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se
libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos
de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a
maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são
valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo
de dizer o que funciona como verdadeiro[12].
A ortodoxia se estabelece
como o piso da ortopraxia. E a ortopraxia é o que anima a ortodoxia. Portanto,
segundo David Bosch, na esteira do iluminismo, as igrejas antigamente "se
arrogavam do direito de determinar qual era a verdade 'objetiva' da Bíblia e de
dirigir a aplicação dessa verdade intemporal ao cotidiano dos
crentes"[13]. Bosch afirma que Schleiermacher "foi o pioneiro em
perceber que toda teologia era influenciada, se não determinada, pelo contexto
em que evoluíra"[14].
Dessa forma, Bosch chega à
conclusão que " a reivindicação universal da hermenêutica da linguagem
precisa ser contestada por uma hermenêutica da ação, porque fazer é mais
importante que saber ou falar. Nas escrituras são bem-aventuradas as pessoas
que agem. E eu concordo com ele que, "não existe, em verdade, conhecimento
exceto na própria ação, no processo de transformar o mundo através da
participação na história'".[15]
A verdade como uma
aproximação do sublime.
Deslumbramento, ou fascínio
pelo numinoso, o mistério tremendo, como queria Rudolf Otto.
O rabino Abraham Joshua
Heschel dizia que os gregos aprenderam para compreender. Os hebreus aprenderam
para reverenciar. O homem moderno aprende para fazer uso de seu
conhecimento[16]. E sugere um outro nível de conhecimento, que leve ao espanto,
ao deslumbramento, ao maravilhamento. A verdade seria, portanto, um encontro
com o sublime.
Heschel define sublime como
aquilo que podemos ver e não conseguimos definir. É a alusão silenciosa das
coisas a um significado maior do que elas mesmas. É o que todas as coisas
definitivas simbolizam; "o silêncio inveterado do mundo que permanece
imune à curiosidade e às indagações, como uma folhagem perdida no
anoitecer". O sublime é o que nossas palavras, fórmulas e categorias não
podem jamais alcançar.
Para o rabino, o sublime não
está, necessariamente, relacionado com o que é vasto e esmagador por suas
dimensões. "O sublime pode ser percebido em cada grão de areia, em cada
gota de água. Todas as flores no verão, todos os flocos de neve no inverno podem
despertar em nós uma sensação de maravilhamento, que é nossa resposta ao
sublime"[17]. Por isso, a verdade está onde a mente não necessariamente
consegue elucidar.
Porque a verdade é sublime,
porque o real está no imponderável, porque a realidade não se limita aos
contornos da racionalidade, nasce a poesia e minha verdade foi expressa no meu
poema "Sobre Deus":
Não sei explicar as razões
da minha fé. Não sei dizer os porquês da minha devoção. Sinto-me inadequado
para convencer os indiferentes a desejaram a pitada do sal que tempera o meu
viver. Tudo o que sei sobre o Divino é provisório. Minhas convicções vacilam.
Todas as certezas são, decididamente, vagas.
Sei tão somente que Ele se
tornou a minha meta, o meu norte, a minha nostalgia, o meu horizonte, o meu
atracadouro. Empenhei o futuro por seguir os seus passos invisíveis. No dia em
que o chamei de Senhor, a extensão do meu meridiano se alongou, os retalhos do
meu mapa se encaixaram, caíram os tapumes da minha estrada, o ponteiro da minha
bússola se imantou.
Sei tão somente que Ele se
fez residente no campus dos meus pensamentos. Presente nos vôos da minha
imaginação, virou um doce ponto de interrogação. Causa de toda inquietação,
tornou-se a fonte de minha clarividência.
Sei tão somente que Ele se
desfraldou como bandeira sobre os meus ombros. E o cilício, as purgações, os
sacrifícios, tudo foi substituído por desassombro. No porão da tortura, nos
suplícios culposos, achei um ambulatório. Os livros contábeis onde se
registravam meus erros foram rasgados. As punições, suspensas. Já não fujo dele
como de um Átila. Eu agora o chamo de Clemente.
Sei tão somente que Ele
ardeu o delicado filamento que acende a luz dos meus olhos. Ele foi o mourão
que marcou o outeiro de minha alma como um jardim. Ele é o badalo que dobra o
sino do meu coração; o alforje onde guardo os acertos e desacertos do meu
destino.
Sei tão somente que Ele me
fascina quando refrata luz. Dele vem o encarnado que tinge minha face com o
rubor do sol. Seu amarelo me brinda com o açafrão do mundo do mistério; e o
roxo me colore de púrpura real. Seu branco é lunar e me prateia. Seu preto me
conduz até o nanquim celestial. Por sua causa, espelho o azul dos oceanos mais
longínquos.
O que dizer de Deus? Tão
pouco! Espero, tão somente, que o meu espanto expresse o tamanho da minha
reverência.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail: E-mail: ricardogondin2@gmail.com
Referências:
[1][1] Alves, Rubem – Religião e Repressão –
Edições Loyola, São Paulo, 2005. p.44.
[2][2] Armstrong, Karen – Em
nome de Deus – Companhia das Letras, São Paulo, 2005, p.168.
[3][3] Idem, p.168.
[4][4] Küng, Hans – O
princípio de todas as coisas – Editora Vozes, São Paulo, 2007, p.62.
[5][5] Idem, p.62.
[6][6] Idem, p.62.
[7][7] Alves, Rubem –
Religião e Repressão, Editor Loyola, São Paulo, p. 138.
[8][8] Mendonça, Antônio Gouvêa
– O Celeste Porvir, a Inserção do Protestantismo no Brasil – Edições Paulinas,
1984, p.208.
[9][9]Queiruga, Andrés
Torres – Creio em Deus Pai – Editora Paulus, São Paulo, 2005, p.21.
[10][10] Comte-Sponville,
André – O espírito do ateísmo – Martins Fontes, São Paulo, 2007, p.32.
[11][11] Sacks, Jonathan –
"Para curar um mundo fraturado – a ética da responsabilidade, Editora
Sefer, São Paulo, p. 23.
[12][12] Foucault, Michel –
Microfísica do Poder, Edições Graal, São Paulo, 2007, p.12.
[13][13] Bosch, David –
Missão Transformadora – Mudanças de Pradigma na Teologia da Missão, Editora
Sinodal, Rio G. do Sul, 2002, p.504.
[14][14]Idem, p.505.
[15][15] Idem, p.508.
[16][16] Heschel, Abraham
Joshua – Deus em busca do homem – Editora Arx, São Paulo, p.43.
[17][17] Idem, p. 49.
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