Ricardo Gondim (*)
Dois pastores paulistas se
fantasiam de Fred e Barney. Isso mesmo, fantasiados de Flintstone, entre
gracejos ridículos, acreditam que estão sendo "usados por Deus para salvar
almas". Na rádio, um apóstolo ordena que tragam todos os defuntos daquele
dia, pois ele sente que Deus o "ungiu para ressuscitar mortos".
Os jornais denunciam dois
políticos de Minas Gerais, "eleitos por suas denominações para representar
os interesses dos crentes", como suspeitos de assassinato. O rosário se
alonga: oração para abençoar dinheiro de corrupção; prisão nos Estados Unidos
por contrabando de dinheiro, flagrante de missionários por tráfico de armas;
conivência de pastores cariocas com chefões da cocaína .
Fica claro para qualquer leigo: O
movimento Evangélico brasileiro se esboroa. O processo de falência, agudo,
causa vexame. Alguns já nem identificam os evangélicos como protestantes. As
pilastras que alicerçaram o protestantismo vêm sendo sistematicamente abaladas
pelo segmento conhecido como neopentecostal. Como um trator de esteiras, o
neopentecostalismo cresce passa por cima da história, descarta tradições e
liturgias e se reinventa dentro das lógicas do mercado. É um novo fenômeno
religioso.
É possível, sim, separá-lo como
uma nova tendência. Sobram razões para afirmar-se que o neopentecostalismo
deixou de ser protestante ou até mesmo evangélico.É uma nova religião. Uma
religião simplória na resposta aos problemas nacionais, supersticiosa na
prática espiritual, obscurantista na concepção de mundo, imediatista nas promessas
irreais e guetoizada em seu diálogo cultural.
Mas a influência do
neopentecostalismo já transbordou para o "mainstream" prostestante. O
neopentecostalismo fermentou as igrejas consideradas históricas. Elas também se
vêem obrigadas a explicar quase dominicalmente se aderiram ou não aos conceito
mágicos das preces. Recentemente, uma igreja batista tradicional promoveu uma
"Maratona de Oração pela Salvação de Filhos Desviados".
Pentecostais clássicos, como a
Assembléia de Deus, estão tão saturados pela teologia neopentecostal que
pastores, inadvertidamente, repetem jargões e prometem que a vida de um
verdadeiro crente fica protegida dentro de engrenagens de causa-e-efeito. Os
"ungidos" afirmam que sabem fazer "fluir as bênçãos de Deus".
É comum ouvir de pregadores pentecostais que vão ensinar a "oração que
move o braço de Deus”.
O Movimento Evangélico implode.
Sua implosão é visceral. Distanciou-se de dois alicerces cristãos básicos,
graça e fé. Ao afastar-se destes dois alicerces fundamentais do cristianismo,
permitiu que se abrisse essa fenda histórica com a tradição apostólica.
1. A teologia da Graça
Desde a Reforma, protestantes e
católicos passaram a trabalhar a Graça como pedra de arranque de um novo
cristianismo. O texto bíblico, “o justo viverá da fé”, acendeu o rastilho de
pólvora que alterou a cosmovisão herdada da Idade Média. A Graça impulsionou o
cristianismo para tempos mais leves. Foi a Graça que acabou com a lógica
retributiva que mostrava Deus como um bedel a exigir penitência. Devido a Graça
entendeu-se que a sua ira não precisa ser contida. O cristianismo medieval fora
infectado por um paganismo pessimista e, por isso, sobravam espertalhões
vendendo relíquias e objetos milagrosos que, segundo a pregação, “ garantiam
salvação e abriam as janelas da bênção celestial”.
Lutero, um monge agostiniano,
portanto católico, percebeu que o amor de Deus não podia ser provocado por
rito, prece, pagamento ou penitência. Graça, para Lutero, significava a
iniciativa de Deus, constante, unilateral e gratuita, de permanecer simpático
com a humanidade. Lutero intuiu que Deus não permanecia de braços cruzados,
cenho franzido, à espera de que homens e mulheres o motivassem a amar. O monge
escancarou: as indulgências eram um embuste. Assim, Lutero solapava o poder da
igreja que se autoproclamava gerente dos favores divinos.
Passados tantos séculos, o
movimento neopentecostal, responsável pelas maiores fatias de crescimento entre
evangélicos, abandonou a pregação da Graça. (É preciso ressaltar, de passagem,
que o conceito da Graça pode até constar em compêndios teológicos, mas não
significa quase nada no dia-a-dia dos sujeitos religiosos).
Os neopentecostais retrocederam
ao catolicismo medieval. É pre-moderna a religiosidade que estimula valer-se de
amuletos “como ponto de contato para a fé”; fazerem-se votos financeiros para
“abrir as portas do céu”; “pagar o preço” para alcançar as promessas de Deus. Desse modo, a magia espiritual da Idade Média se disfarçou de piedade. A
prática da maioria dos crentes hoje se concentra em aprender a controlar o
mundo sobrenatural. Qual o objetivo? Alcançar prosperidade ou resolver
problemas existenciais.
2. A compreensão da Fé
“A Piedade Pervertida” (Grapho
Editores) de Ricardo Quadros Gouvêa é um trabalho primoroso que explica a
influência do fundamentalismo entre evangélicos.
“O louvorzão, assim como as
vigílias e as reuniões de oração, e até mesmo o mais simples culto de domingo,
muitas vezes não passam de um tipo de superstição que beira a feitiçaria, uma
vez que ele é realizado com o intuito de ‘forçar’ uma ação benévola da parte de
Deus, como se o culto e o louvor fossem um ‘sacrifício’, como os antigos
sacrifícios pagãos. Neste caso, não temos mais liturgias, mas sim teurgias, nas
quais procura-se manipular o poder de Deus” (p.28).
Ora, enquanto fé permanecer como
uma “alavanca que move os céus”, as liturgias continuarão centradas na
capacidade de tornar a oração mais eficaz. Antes dos neopentecostais, o
Movimento Evangélico já se distanciara dos Místicos históricos que praticavam a
oração com um exercício de contemplação e não como ferramenta de como tornar
Deus mais útil.
Fé não é uma força que se projeta
na direção do Eterno. Fé não desata os nós que impedem bênçãos. Fé é coragem de
enfrentar a vida sem qualquer favor especial. Fé é confiança de que os valores
de Cristo são suficientes no enfrentamento das contingências existenciais. Fé
aposta no seguimento de Cristo; seguir a Cristo é um projeto de vida
fascinante.
O neopentecostalismo ganhou
visibilidade midiática, alastrou-se nas camadas populares e se tornou um
movimento de massa. Por mais que os evangélicos conservadores não admitam, o
neopentecostalismo passou a ser matriz de uma nova maneira de conceber as
relações com o Divino.
A alternativa para o rolo
compressor do neopentecostalismo só acontecerá quando houver coragem de romper
com dogmatismos e com os anseios de resolver os problemas da vida pela magia.
O caminho parece longo, mas uma
tênue luz já desponta no horizonte, e isso é animador.
Soli Deo Gloria
(*) Ricardo Gondim é escritor,
teólogo e presidente nacional da Igreja Betesda
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