Ricardo Gondim
Desde a adolescência, organizei a
vida a partir de valores da religião. Frequentei e lecionei na escola
dominical. Militei em grupos jovens. Me preparei para o exercício pastoral em
um seminário. Caminhei pelos bastidores do mundo religioso. Sentei na roda de
alguns notórios líderes brasileiros e ianques.
Zeloso, sempre procurei cumprir
com as exigências das instituições que participei. Se a igreja não permitia que
mulheres cortassem o cabelo, briguei com a minha mulher. Se diziam ser pecado
ir ao cinema, para evitar a aparência do mal e mesmo não concordando com a
proibição, eu viajava para longe quando queria ver algum filme.
Relevei disparates. Calei diante
de incoerências. Dei as costas para hipocrisia. Eu considerava a causa de
Cristo importante demais. Para não escandalizar, fiz vista grossa para muita
ruindade.
Abracei as instituições como
divinas e acabei conivente. Não notei o caminho sinuoso do mercenário. Ingênuo
sequer me dei conta dos intencionalmente cobiçosos. Justifiquei tolices. Eu
acreditei na sinceridade das pessoas. Cheguei ao ponto justificar um monte de
bobagem por achar que havia pureza nas intenções.
Um eureka aconteceu em minha
vida. Embora sincero, eu dava volta, sem sair do lugar. Chego a um tempo de
vida que algumas reivindicações da religião perdem seu apelo. Depois de
inúmeras decepções, deixei de acreditar na inerente pureza religiosa. Notei que
quanto mais bagunçada a interioridade (a alma), mais simétrico o exterior (a
aparência). Trato a pregação da santidade absoluta como mistificação. Lembro os
malabarismos que testemunhei. Quantos líderes falseavam suas inadequações,
projetando em pecadilhos monumentais desvios éticos.
Jesus não conviveu ao lado de
gente certinha demais. Ao contrário, o Nazareno evitava e criticava quem pretendia
cumprir todas as demandas da lei judaica. Ele chamou austeros sacerdotes de
sepulcros caiados; tratou mestres como cegos guiando outros cegos. Os
evangelistas do templo conseguiam convertidos, mas Jesus afirmava que eles
apenas os condenavam a um inferno duplo. O filho do homem, gostava da companhia
dos pecadores. Ele se sentia bem perto dos que assumiam a condição humana.
Quando alistou apóstolos não se importou com suas inadequações. Pedro era
tempestivo; Tomé, hesitante; João, vingativo; Filipe, lento em compreender;
Judas, ladrão. Acostumado com os costumes da sinagoga e com o linguajar dos
doutores da Lei, ele não buscou discípulos nesses círculos.
Jesus aceitou que uma mulher de
reputação duvidosa derramasse perfume sobre sua cabeça. Elogiou a fé de um
centurião romano, adorador de ídolos. Não deixou que apedrejassem uma adúltera.
Mostrou-se surpreso com a determinação de uma mãe cananéia. Nos estertores da
morte, prometeu o paraíso a um ladrão. Não mediu esforços ou palavras para
enaltecer os diferentes.
Santidade nunca significou para
ele a simples obediência de normas. Jesus não tratava um ato igual a uma
intenção. Adultério não se restringe ao coito; ele questionava os valores que
antecediam o sexo e que podiam ou não desembocar em traição.
O ódio residual, que dá ânsia de
matar, é mais grave do que o próprio homicídio. Para Jesus, pecado e santidade
participam nas dimensões mais profundas da interioridade humana. Caráter tem a
ver com valores escondidos nos porões da alma. Integridade depende de como o
ser se estrutura às escondidas.
Para Jesus, santidade e
integridade se confundem. Aceitar-se sem panacéias e, sem eufemismo, ser
inteiro, eis a receita da perfeição. Sombra, falta, inadequação, defeito, luz e
bondade precisam ser encarados sem medo.
Deus não requer vidas
perfeitinhas. Ele deve saber que a estrutura humana vem do pó. Deus não exige
correção absoluta. Para isso, ele teria que converter mulheres e homens em
anjos.
Os que vivem a varrer as faltas
para debaixo dos tapetes eclesiásticos não têm parte no reino de Deus. As
prostitutas, que aprenderam a lidar com suas faltas e defeitos, precedem os
sacerdotes bem compostos. O samaritano, que traduziu sua humanidade em gesto de
solidariedade, virou o herói da parábola. O tempestivo Pedro recebeu as chaves
do Reino de Deus. A mulher, outrora possessa de sete demônios, anunciou a
alvissareira notícia da ressurreição.
A lei serviu para mostrar que
legalismo não desemboca em humanidade. Integridade equivale ao constante
exercício de confrontar as luzes e as sombras que estruturam a alma. Me afasto
do moralismo religioso para amadurecer na ética. Fujo do legalismo para
recuperar os muitos anos em que corri em círculos. Repenso a espiritualidade
porque desejo aprender a viver.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e
teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil
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